A primeira vez que ouvi falar de Gonzalo Báez-Carmargo foi há muitos anos, por meio de um exemplar de sua versão em espanhol de Cantos dos bairros, de Toyohiko Kawaga. Pouco depois descobri que o célebre intelectual evangélico mexicano não somente havia traduzido poemas de um autor japonês, mas que também cultivava, com invejável domínio, as artes poéticas, conforme notei em El artista y outros poemas. Somente depois de vários anos é que tive oportunidade de conhecer o outro lado de sua personalidade multifacetada: Báez-Carmargo, o tradutor bíblico. E havia outros: Báez-Carmargo, o teólogo; Báez-Carmargo, o jornalista; Báez-Carmargo, o arqueólogo.
De todas as leituras que contribuíram para a formação de minha consciência social, umas das que mais me lembro é a de El comunismo, El cristianismo y lós cristianos, deste distinto escritor. Especialmente o epílogo desse pequeno rgande livro, intitulado “A ação das igrejas e dos cristãos”, propõe frentes de ação cristã na sociedade. Apesar dos anos, elas não perderam sua atualidade.
Em primeiro lugar, o autor insiste que o comunismo é “um juízo de Deus sobre as igrejas e os cristãos”. Ele jamais teria surgido ou adquirido o poder que chegou a ter, se os cristãos tivessem sido fiéis à sua “vocação revolucionária”. Lamentavelmente, longe disso, “temos neutralizado os fermentos revolucionários do evangelho de Cristo”. Primeiro, por achar que o evangelho é impraticável, utópico e irrealizável em nível social; segundo, porque o temos convertido em “algo puramente individual, quase egoísta, sem transcendência nem responsabilidades quanto à situação de nosso próximo no mundo que nos rodeia”. Assim, a igreja se converteu numa parte integral da ordem estabelecida, “uma entidade francamente reacionária”, “consciente ou inconscientemente aliada aos sistemas e classes que oprimem e exploram o provo”. Cabe-nos, pois, antes de tudo, reconhecer nossa falha e buscar o perdão de Deus por nossa negligência nas dimensões sociais do evangelho e por haver deixado esse movimento anticristão nos tomar a bandeira da justiça social.
Tendo reconhecido nossa culpa – diz Báez-Carmargo – devemos nos dedicar ao que temos que fazer a seguir. Para ele, a tarefa prioritária que somos chamados a encarar como cristãos é “criar consciência entre nós mesmos de nossa vocação revolucionária”, estudando a fundo tanto a mensagem bíblica (no que se refere à nossa responsabilidade social) como as condições de vida das massas populares. Além disso, “devemos esforçar-nos para obter uma compreensão clara e concreta dos princípios cristãos em sua projeção e aplicação a esses problemas e necessidades”. Mesmo que Cristo não tenha deixado um programa político e social específico – observa Báez-Carmargo – Ele deixou “princípios” que servem como base para um conjunto de declarações sociais cristãs que podem resumir-se da seguinte forma:
A vida do homem não consiste somente na satisfação de suas necessidades biológicas, mas também em realizar em si o propósito divino;
A pessoa humana é de supremo valor na vida social, e consequentemente, não deve ser usada como “um simples instrumento de produção, um animal de carga, uma fonte de exploração”;
As relações humanas se baseiam na fraternidade, em uma solidariedade que transcende as barreiras de raça, nação ou classe social;
A vida social requer cooperação em vez de conflito e concorrência, razão pela qual o lucro deve ser substituído pelo serviço e pelo bem estar comum;
A doutrina cristã sobre a propriedade privada, mas sim a da mordomia, de maneira que os bens devem ser adquiridos com justiça e usados para o bem da sociedade;
Todas as vocações têm uma dignidade que se encontra no serviço a Deus e ao próximo;
A liberdade, concebida como “liberdade para realizar nossa vocação e responder ao propósito divino”, é uma condição indispensável para uma ordem social justa;
O amor é a lei suprema da vida; ele está ligado à paixão pela justiça social;
A paz é consequência da justiça e por isso “a melhor maneira de trabalhar pela paz é trabalhar pela justiça”.
Para concluir, Báez-Carmargo se refere à relação entre a ação evangelizadora e a ação social. Ele diz que:
A principal tarefa da igreja como uma comunidade de cristão é produzir novos homens como “material de construção” da nova ordem e oferecer total cooperação em toda tarefa de edificação social. Na base dessa tarefa se encontram a proclamação do evangelho da redenção pessoal [...] e a educação cristã como um meio de formar personalidades nas quais se reflita o caráter de Cristo. Porém, é fundamental também que os crentes [...] se organizem para uma ação positiva em prol da transformação social. Isso significa uma participação ativa como indivíduos ou como equipes, células ou comandos, na promoção ativa de tudo o que seja justo.
Conforme explicado no comedo do livro, El comunismo, El cristianismo y lós cristianos se baseia em uma série de conferências que o autor realizou inicialmente no Seminário Evangélico de Teologia, em Matanzas, Cuba, em 1957. Desde então, a situação política, social e econômica de nossos países se complicou muito. Além disso, os feitos históricos dos últimos anos deixaram de se basear na utopia marxista de uma nova sociedade que seria criada por meio da “revolução do proletariado”. No entanto, ainda prevalece a necessidade de, como ]cristãos, vivermos nossa vocação revolucionaria, atentos ao desafio de manter unidas a palavra e ação na missão cristã.
Trecho de O que é missão integral, de René Padilla. via: rennovario