Seguiu em direção à casa do homem, ela estava decidida, mesmo com a desaprovação de algumas de suas companheiras de luta, ela estava determinada. Segurava no braço um vaso simples, cujo aroma do perfume carregado parecia criar uma névoa, enquanto ela caminhava apressada. As pessoas a olhavam, não somente por causa do cheiro, sobretudo porque ultrapassava limites da cidade em que ela e sua gente não eram benvindas.
Ao seu lado, duas amigas tentavam manter o ritmo dos passos e das palavras, queriam que ela desistisse.
Era tão decidida que as amigas não tiveram alternativa, diminuíram o ritmo, antes que ela fizesse mais uma mudança de rua entre as vielas apertadas da região central do vilarejo, e ainda puderam se despedir com um abanar das mãos e um olhar preocupado e compassivo, temeroso, sobretudo. Ela viu nos olhos das amigas o medo, mas não tinha como voltar atrás.
Corria, segurando com a outra mão a ponta do longo vestido, colorido e envelhecido, que denunciava seu ganha-pão e que atraía olhar de reprovação das religiosas e de desejo dos não menos religiosos. Seu cabelo esvoaçava conforme corria e já descalça, para melhorar seu desempenho, parte das pernas ficava à mostra. Olhares de tabus e taras envidraçaram como se pudessem ser emoldurados.
Parou, esbaforida, respiração forte e o olhar procurando, com a ajuda das pontas dos pés, uma trilha em meio à multidão que se aglomerava ao lado de fora da casa do fariseu.
Quando perceberam que uma meretriz estava ali, a atenção migrou do interior da casa, que recebia visita tão intrigante de um simples amigo de pescadores, para a não menos intrigante presença de uma mulher como ela, em rua pela qual sequer deveria passar. Olhavam uns para os outros como quem perguntava “o que esta mulher está fazendo aqui?”.
Começou a se esquivar de olhares e a pisar nos espaços vazios à sua frente, demonstrando que nada a faria parar. Esbarrava, tropeçava, deixava perfume e espanto, seguia resoluta. Parou em frente a porta. Tomados que estavam pelo inusitado, os secretários do importante líder religioso do grupo dos fariseus nem puderam evitar, a olhavam com susto e desprezo. Ela entrou.
Fosse em qualquer outra situação, alguém da casa a expulsaria com xingamentos, agressões, tanta raiva que nem mesmo todas as guerras da humanidade se poderiam repetir. Mas aquele jantar estava sendo servido àquele que o povo chamava de Mestre, que estava ensinando valores éticos sobre o Reino de Deus, que rabino algum até aquele dia fora capaz de formular. O fariseu queria parecer mais justo que o mestre do povo. Tinha também curiosidade sobre ele e gostaria muito poder desmistifica-lo sob o risco de sua liderança inflamar o povo contra o poder, dele e dos seus. Para não atrapalhar seus planos, acenou dizendo que a mulher podia ficar.
Ao mesmo tempo, olhou pra ela com toda aquela raiva que somente conseguem ter os religiosos que acham que são melhores que os outros e que acham que devem defender a moral como representantes de Deus entre os homens. A reprovou com todas as suas forças. Seu olhar dizia que se pudesse a mataria, apedrejada. Se não fosse a situação que a protegia naquele momento, se não fosse a presença deste homem em sua casa, se ele não estivesse entre os dois, ela certamente seria punida por tamanho sacrilégio, uma mulher pecadora em sua presença, em sua casa! Ah! Se não fosse este que protege os desvalidos, ela morreria!
Mas, além e ser salva da morte apenas porque o homem de Nazaré estava entre ela e todo seu passado refletido naqueles olhares, o que ela vira no olhar do mestre do povo a salvou profundamente, de todas as maneiras que uma mulher pode ser salva. Ela se acalmou, não se impressionou com nenhum olhar que em toda a sua vida determinou suas emoções e suas atitudes até ali. Deixou pra trás o olhar de medo paralisante das amigas que sentiam não ter como mudar sua própria história, deixou o olhar de reprovação e raiva daqueles que a julgavam, deixou o olhar de desejo pervertido que se especializou em produzir e cativar.
Se sentiu acolhida e amada, protegida e livre, como nunca. Tomou a decisão de correr todos os riscos possíveis, apenas para perfumar seus pés, porque dias antes ela havia encontrado aquele homem em seu gueto de trabalho e, diferentemente de todos os homens que pra lá também iam, ele não parecia querer seu corpo, não queria sugar sua alma, não queria usa-la, não queria impor sua masculinidade com opressão, força ou extração de prazer. Ele a olhava como se fosse seu pai, um pai bom, carinhoso e afetuoso, olhava como se fosse seu irmão, mais velho, que se alegra com a brincadeira de menina, que a protege de qualquer olhar de um outro homem, que inspira segurança. Ele a olhara com o afeto de um amigo, que antes de qualquer possibilidade de ve-la como mulher, a via como um ser humano, igual a ele. Como pode? Um homem tão santo e puro me olhar como se eu fosse igual a ele?
Tudo porque Ele a olhou com graça, afeto, igualdade. Tudo porque ela deixou que o olhar entrasse e invadisse sua alma. Tudo porque ela decidiu a que olhar prestar atenção. Ela enfim discernia quem era, não o que fazia, não os abusos que sofrera, não as projeções carentes dos outros, não o preconceito da sociedade, mas uma mulher, digna de amor.