Para os demais evangelistas João Batista aparece no deserto, adulto e com uma missão, como que do nada. É apenas Lucas – este mesmo Lucas de Atos – que oferece ao homem adulto uma história de origem e portanto uma premonição. 

João é filho de um sacerdote, Zacarias, e de sua esposa Isabel, ambos avançados em idade e sem filhos, como Abraão e Sara; seu nascimento é anunciado por um anjo, como o de Ismael, como o de Sansão, como o de Jesus. 

Sobre menino o anjo explica que “muitos se alegrarão com o seu nascimento”, porque ele será “cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe, e converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, o Deus deles”. Sua postura servirá para cumprir a última profecia proferida no Antigo Testamento (Malaquias 5:6), pela qual Deus promete finalmente “converter os corações dos pais aos filhos”, isso (descobrimos agora) a fim de “providenciar um povo preparado para o Senhor”. Zacarias, ele mesmo cheio da lucidez do Espírito Santo, enxerga que seu filho “será chamado profeta do Altíssimo, pois irá adiante do Senhor, preparando o caminho para ele”, porque, graças à misericórdia de Deus, “a aurora virá lá do alto nos visitar”. 

Esse menino, sobre o qual descerá pela última vez a Palavra do Senhor, salta “de alegria” ainda no ventre de sua mãe ao pressentir na saudação de Maria a estarrecedora proximidade do reino. 

Essa tensão entre o antigo e o novo, entre o que foi prometido e o que virá, entre as velhas profecias e a nova luz, marcará a posição e o papel de João no Novo Testamento. Para Lucas, ainda mais do que para os demais evangelistas, João é a divisa simbólica entre dois mundos, representando ao mesmo tempo ponte de ligação e muralha de separação entre a Lei e as boas novas. 

“A lei e os profetas vigoraram até João; desde então é anunciado o evangelho do reino de Deus (Lucas 16:16)”

Então, antes que Jesus apareça nas cidades, o que acontece é que João aparece no deserto. O primo de Jesus vive como um outsider, inteiramente à margem da cultura reinante, mas usa essa sua postura marginal como credencial para sua posição de agente transformador. João é, afinal de contas, “a voz que clama no deserto” – e gritar no deserto, onde ninguém pode ouvir, é um contrasenso mas é também manifestação artística, ato de resistência e de contracultura, e portanto ato divino. Desde o tempo de Moisés, desde a sarça ardente que o fogo não consome e dos caminhos circulares debaixo do maná (e mesmo antes, nas peregrinações de Abraão e seus filhos que são como grãos de areia), Deus é aquele que sustenta a vida no deserto. 

E logo no deserto há multidões, porque as pessoas escoam da Judéia e da Galiléia e de Jerusalém e de destinos ainda mais improváveis para desembocar nas margens do Jordão, onde João está apregoando uma nova e desconcertante mensagem, “o batismo de arrependimento para remissão dos pecados”. 

“Arrependam-se”, João diz aos que recorrem a ele (precisamente como Pedro dirá quando estiver na sua posição – e podemos supor que os ouvintes de Pedro interpretarão sua injunção pelo que sabiam da mensagem de João), “porque o reino de Deus está próximo”. 

Embora nunca se estenda sobre a natureza exata do reino de Deus ou sobre a natureza de sua proximidade (estará próximo no tempo? no espaço?), João está absolutamente convencido que o arrependimento é a única postura adequada diante da iminência de uma Pessoa (alguém “maior e mais poderoso do que eu”, que está para se manifestar e pode muito bem ser o Messias das profecias), pessoa que por sua vez precipitará um terrível Evento (que pode muito bem ser o juízo final, visto que “o machado já está posto junto à raiz das árvores; toda árvore que não produz bom fruto será cortada e lançada no fogo”). 

Por associar sua mensagem a essa expectativa de transformação iminente e possivelmente definitiva, a onda de João é frequentemente catalogada entre os movimentos “apocalípticos” ou “escatológicos” – isto é, definidos pela sua preocupação com as últimas coisas e com as derradeiras medidas a serem tomadas antes do fim – dos quais houve muitos antes dele e permanecem tão frequentes que não conhecemos ainda o último. 

O que todas as tradições concordam é que João representou uma novidade desconcertante e uma onda irresistível. Para o embaraço da religião institucionalizada do Templo e dos fariseus, “multidões” de judeus de todas as origens e de todos os matizes [1] iam até João, [2] confessavam os seus pecados e [3] eram batizados por ele no rio Jordão [4] para o perdão dos pecados”. 

O embaraçoso estava em que nada havia de ortodoxo em qualquer uma dessas práticas. 

Nada na Lei, na história ou na tradição prescrevia que adoradores afluíssem a um profeta errante e confessassem os seus pecados, e nada sugeria que poderiam beneficiar-se em alguma medida com isso. Como acabamos de ver, embora a Lei prescrevesse uma série de imersões rituais, eram todas realizadas sem assistência pelo próprio adorador; o novo método de João, que batizava ele mesmo os que vinham até ele, não tinha precedentes que o redimissem. Outra diferença fundamental: as imersões previstas na Lei estavam invariavelmente ligadas à pureza cerimonial, e deviam ser repetidas todas as vezes que o judeu devoto se visse embaraçado pela impureza ritual. Em contrapartida, o batismo de João, com seus requerimentos e benefícios, era oferecido uma única vez e de uma vez por todas diante da emergência e da urgência do Reino. 

O mais severamente não-ortodoxo e escandaloso no batismo de João, no entanto, estava em sua sua aspiração a propiciar o perdão dos pecados. Nem a mais liberal interpretação da Lei poderia sugerir que alguma outra prática, que não os sacrifícios apresentados no Templo, pudesse prover a remissão de pecados – e eis aqui o profeta cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe, batizando gente, ouvindo suas confissões públicas e apresentando o batismo de arrependimento “tendo em vista a remissão dos pecados”. 

Propor e promover um rito alternativo que mediasse o perdão divino era sustentar uma espécie muito grave de desobediência civil ou, neste caso, religiosa. Usar o ofício divino de profeta para contornar o serviço do Templo e suas minuciosas exigências não equivalia apenas a criticá-lo (como faziam, por exemplo, os essênios); era questionar por completo a sua legitimidade. 

Não é à toa que essa postura tenha despertado a indignação de fariseus e saduceus, judeus particularmente comprometidos com a ortodoxia e com os escrúpulos do Templo, que foram sondar as obras do Batizador no Jordão e acabaram saudados por ele como “ninhada de víboras” – gente que, segundo João, usava sua religiosidade como manobra evasiva, na ilusão de poder “escapar da ira vindoura”. 

O que resta portanto no batismo de João está em que, embora tivesse suas raízes fixas em expectativas e procedimentos anteriores, diferia desses ao ponto do escândalo e da transgressão. Lembrava os procedimentos prescritos para a limpeza ritual, mas separava-se deles porque a purificação que oferecia era interior e não exterior. Evocava as imersões previstas na lei e na tradição, mas se distinguia delas por seu caráter não-repetitivo e por ser administrado por um mediador. Era realizado no Jordão, que ecoava com a libertação do Êxodo e a posse da Terra, mas oferecia o perdão dos pecados fora de Jerusalém e longe do Templo. E, embora fosse administrado por João e seus discípulos, apontava para um grande e outro Mediador que estava ainda para chegar. 

Tudo na mensagem de João existia no fio da navalha, na finíssima divisão entre continuidade e descontinuidade. 

O problema para a religião institucionalizada de Jerusalém estava em que muita gente na massa inculta, não devidamente esclarecida nas necessidades e clarezas da ortodoxia, via esse novo e incômodo profeta como especialmente autorizado por Deus. E quem é Deus para autorizar novidades? Pelo contrário, é natural concluir que basta alguém oferecer liberdades em nome de Deus para demonstrar sua própria desqualificação. 

Isso fariseus e saduceus enxergavam com clareza, mas a multidão se deixa desviar com tanta facilidade. Chegarão a seguir outro transgressor, um galileu que tentará justificar as novidades de João Batista com o absurdo argumento de que eram transgressões endossadas pelo céu (Mateus 21:25). 

Como que para irritá-los, esse novo transgressor anunciará precisamente a mesma “boa nova” do “arrependam-se, porque o reino de Deus está próximo” que tanto incomodou-os no Batizador. E chegará ao extremo de sugerir que saduceus e doutores da Lei rejeitaram o propósito de Deus para suas vidas (como se isso fosse possível!) quando recusaram-se a submeter-se ao batismo de João (Lucas 7:29-30). 

E, como que deliberadamente, como que para manchar logo de início a sua reputação e deixar muito claro a que veio, a primeira coisa que o novo transgressor fará em sua vida pública será identificar-se com a mensagem de João, sendo batizado por ele no rio Jordão, que àquela altura já se maculara com as impurezas de tantos. 


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