Fui destinada a ser evangélica por escolha de meu pai e de minha mãe.
Fossem budistas, eu certamente o seria, pelo menos até a insurreição da fase da revolta. Minha família me fez crente, Deus me fez rebelde. Perdoem-me os amigos ateus e as amigas atéias, mas devo esse milagre à Deus.
Cresci vendo mulheres traídas e maltratadas serem aconselhadas a perdoar seus maridos em nome de Deus. Caso a traição fosse inversa, o pobre irmão, envergonhado, tinha toda uma igreja em oração até que o Senhor lhe preparasse uma esposa fiel e digna.
Apóstolo Paulo escrevera que às mulheres era proibido falar, portanto deveriam ficar caladas na igreja. Dissera também que afeminados eram abomináveis. Tava tudo na bíblia, na palavra de Deus.
Usávamos saia, não cortávamos o cabelo, não andávamos de bicicleta, não éramos livres como os meninos. Até, e principalmente, nossa virgindade era propriedade da religião.
Nunca entrou em minha cabecinha que Deus achasse bonito minha mãe orando e chorando, anos após anos, pelos cantos da casa, para que Jesus salvasse meu pai, o libertasse, para que ele parasse de maltratá-la, para que o Espírito Santo o ensinasse a não ser mais um homem cruel. Jamais pude compreender e aceitar que era vontade de Deus que eu não pudesse jogar bola, ir à praia, tomar banho de piscina (Essa é a hora que vocês podem ter dó de mim. Eu tenho.).
No início da adolescência que ouvi os primeiros rumores de que dava pra reinterpretar o que o apóstolo Paulo havia escrito (sobre as mulheres, óbvio. A parte dos homossexuais continuaria em voga). Precisavam de uma explicação aceitável, e não foi difícil: a teologia diferenciava a interpretação exegética da hermenêutica, e agora as fêmeas não só poderiam falar, como também ser presbíteras, pastoras e até bispas.
Minha esperança durou quase nada: no primeiro encontro de mulheres que fui, a pastora ensinou à multidão feminina qual a melhor forma de limpar uma geladeira. Depois ouvimos uma pregação sobre como aprender a abrir mão da vontade própria para colocá-la na mão de um homem. Chamavam a essa bizarrice de submissão. Tava na bíblia. E fim de papo. A tarde foi brindada com chá, biscoitos, e um desfile de moda. Porque as irmãs não tinham apenas que ser meigas, tinham também que aprender as ser fúteis.
Deus não é mulher; nem homem. Jesus o chamava de Aba, paizinho. Há passagens bíblicas que se referem a Deus como uma mãe que não abandona seu filho, como uma galinha que cuida dos pintos debaixo de suas asas. Nas palavras de Leonardo Boff, a face materna de Deus, Pai e Mãe de nossas almas.
Deixaram a mulher falar, desde que ela não opinasse. Deixaram a mulher subir no púlpito, mas para repetir o discurso opressor. Deixaram a mulher usar o microfone, contanto que usasse salto, maquiagem, que fosse um macho típico.
Por trás do discurso de que a “mulher sábia edifica a sua casa”, estava a sutileza da negação da personalidade, do desejo, da firmação enquanto ser. A mulher “sábia” deveria estar a serviço da sexualidade de seu marido, porque não queria ser traída; a mulher “sábia” não gritava como uma louca, e compreendia que seu esposo só gritava quando estava nervoso. Buscaria acalmá-lo, cheia de sabedoria.
Enquanto buscava piamente ser sábia, a mulherada não sabia, por exemplo, que Olga Benário parecia mais com o Cristo, por não “se alegrar com a injustiça” e por “padecer perseguições por causa da justiça”.
Naquela época e hoje, as pregações de mulheres para mulheres nunca as convidarão a pensar porque há mulheres que ganham menos que os homens exercendo uma mesma função. Que nem toda mulher precisa procriar para sentir-se plena. Tampouco que casamento é o caminho para a felicidade. As pregações evangélicas de mulheres para mulheres tornam ambas mais infelizes – as primeiras porque pregam o que não vivem. As segundas, porque além de serem oprimidas, ainda alimentarão sentimentos de culpa quando suas almas se cansarem da injustiça sofrida em nome de Deus. Tolas, destroem a vida com as próprias mãos. Para a religião, a mulher “sábia” até pode trabalhar fora e pagar contas, desde que não deixe de cuidar dos filhos, cozinhar e limpar a casa. A mulher “sábia” é um robô à disposição dos anseios de sucesso de seu marido e dono, que faz para a família os planos que bem lhe aprouver. A mulher “sábia” dos conservadores é tão desalmada, que deixa de ser mulher. Deixa de ser. Vira coisa.
Publicado por Eliane Pinheiro, no Sobre fé e transcendência