[...nenhum sistema de dominação e controle, tem como sobreviver à súbita ausência de débitos.]
A fim de se garantir a sobrevivência de qualquer sistema, ser perdoado deve ser complicado. Deve ter um procedimento, uma hierarquia, um prazo, um trâmite e um preço. Para que o débito exerça de modo adequado o seu poder de controle, o perdão não pode ser distribuído indiscriminadamente. Ninguém deve ter poder para absolver a seu bel-prazer – e, como se não bastasse a sua própria insubordinação, era com a missão de distribuir o perdão que Jesus convidava seus seguidores a passear mundo afora.
Nada é mais subversivo do que o perdão emitido sem critério, e era um Deus assim – uma vida assim – que Jesus apresentava ao mundo. A este mundo.
A singularidade desse indulto universal é tão assombrosa que nem mesmo a igreja foi capaz de represá-la por completo. Porém os líderes pós-apostólicos entenderam muito depressa que a euforia libertadora do mais radical e abrangente dos perdões pode ser anulada imediatamente pela contabilização de novos débitos.
Afinal de contas, quem não deve nada a ninguém pode crer-se livre para mudar o mundo ou para reger a sua própria vida – e nada há de mais perigoso. O espírito da liberdade pode insistir em soprar onde quiser – e nada há de mais inconveniente.
Foi tida como medida urgente e necessária, portanto, reinstaurar a culpa. Foi deliberado como recomendável anular-se o risco da liberdade e do perdão.
Porque, descuidado leitor, o que você empreenderia se entendesse de repente que não deve nada aos seus empregadores? O que você faria agora mesmo se entendesse que não deve nada a seu banco, a seu governo ou a si mesmo?
Por tudo que é sagrado, o que você faria se entendesse que não deve nada a Deus?
Ser perdoado deve ser complicado.
Este relato faz parte do livro As divinas gerações.
Link para comprar o livro impresso ou a versão digital.
Paulo Brabo @saobrabo